Por Augusto Nicodemus
Em certa ocasião o Senhor Jesus teve de fazer uma escolha entre ter 5 mil pessoas que o seguiam por causa dos benefícios que poderiam obter dele, ou ter doze seguidores leais, que o seguiam pelo motivo certo (e mesmo assim, um deles o traiu). Em outras palavras, uma decisão entre muitos consumidores e poucos fiéis discípulos. Refiro-me ao evento da multiplicação dos pães narrado em João 6. Lemos que a multidão, extasiada com o milagre, quis proclamar Jesus como rei, mas ele recusou-se (João 6.15). No dia seguinte, Jesus também se recusa a fazer mais milagres diante da multidão pois percebe que o estão seguindo por causa dos pães que comeram (6.26,30). Sua palavra acerca do pão da vida afugenta quase que todos da multidão (6.60,66), à exceção dos doze discípulos, que afirmam segui-lo por saber que ele é o Salvador, o que tem as palavras de vida eterna (6.67-69).
O Senhor Jesus poderia ter satisfeito às necessidades da multidão e saciado o desejo dela de ter mais milagres, sinais e pão. Teria sido feito rei, e teria o povo ao seu lado. Mas o Senhor preferiu ter um punhado de pessoas que o seguiam pelos motivos certos, a ter uma vasta multidão que o fazia pelos motivos errados. Preferiu discípulos a consumidores.
Infelizmente, parece prevalecer em nossos dias uma mentalidade entre os evangélicos bem semelhante à da multidão nos dias de Jesus. Parece-nos que muitos, à semelhança da sociedade em que vivemos, têm uma mentalidade de consumidores quando se trata das coisas do Reino de Deus. O consumismo característico da nossa época parece ter achado a porta da igreja evangélica, tem entrado com toda a força, e para ficar.
Por consumismo quero dizer o impulso de satisfazer as necessidades, reais ou não, pelo uso de bens ou serviços prestados por outrem. No consumismo, as necessidades pessoais são o centro; e a "escolha" das pessoas, o mais respeitado de seus direitos. Tudo gira em torno da pessoa, e tudo existe para satisfazer as suas necessidades. As coisas ganham importância, validade e relevância à medida em que são capazes de atender estas necessidades.
Esta mentalidade tem permeado, em grande medida, as programações das igrejas, a forma e o conteúdo das pregações, a escolha das músicas, o tipo de liturgia, e as estratégias para crescimento de comunidades locais. Tudo é feito com o objetivo de satisfazer as necessidades emocionais, psicológicas, físicas e materiais das pessoas. E neste afã, prevalece o fim sobre os meios. Métodos são justificados à medida em que se prestam para atrair mais freqüentadores, e torná-los mais felizes, mais alegres, mais satisfeitos, e dispostos a continuar a freqüentar as igrejas.
Esta mentalidade consumista por parte de evangélicos se mostra por vários ângulos. Numa pesquisa recente feita pelo instituto Gallup nos Estados Unidos constatou-se que quatro a cada 10 americanos estão envolvidos em pequenos grupos que se reúnem semanalmente buscando saída para o envolvimento com drogas, problemas familiares, solidão e isolacionismo. Embora evidentemente muitos estarão em busca de uma oportunidade para aprofundar a experiência cristã e crescer no conhecimento de Deus, a maioria, segundo Gallup, busca satisfazer suas necessidades pessoais. De acordo com a revista Newsweek, um a cada cinco americanos sofre de alguma forma de doença mental (incluindo ansiedade, depressão clínica, esquizofrenia, etc.) durante o curso de um ano. E disso se aproveitam os espertos. Uma denúncia contra a indústria evangélica de saúde mental foi feita ano passado por Steve Rabey em Christianity Today. Cada vez mais cresce o marketing nas igrejas na área de aconselhamento, com um número alarmante de profissionais cristãos oferecendo ajuda psicológica através de métodos seculares. A indústria de música cristã tem crescido assustadoramente, abandonando por vezes seu propósito inicial de difundir o Evangelho, e tornando-se cada vez mais um mercado rentável como outro qualquer. A maioria das gravadoras evangélicas nos Estados Unidos pertence à corporações seculares de entretenimento. As estrelas do gospel music cobram cachês altíssimos para suas apresentações. Num recente artigo em Strategies for Today’s Leader, Gary McIntosh defende abertamente que "o negócio das igrejas é servir ao povo". Ele defende que a igreja deve ter uma mentalidade voltada para o "cliente", e traçar seus planos e estratégias visando suas necessidades básicas, e especialmente faze-los sentir-se bem.
Um efeito da mentalidade consumista das igrejas é o que tem sido chamado de "a síndrome da porta de vai-e-vem". As igrejas estão repletas de pessoas buscando sentido para a vida, alívio para suas ansiedades e preocupações. Assim, elas escolhem igrejas como escolhem refrigerantes. Tão logo a igreja que freqüentam deixa de satisfazer as suas necessidades, elas saem pela porta tão facilmente quanto entraram. As pessoas buscam igrejas onde se sintam confortáveis, e se esquecem de que precisam na verdade de uma igreja que as faça crescer em Cristo e no amor para com os outros.
Creio que há vários fatores que provocaram a presente situação. Ao meu ver, um dos mais decisivos é a influência da teologia e dos métodos de Charles G. Finney no evangelicalismo moderno. Houve uma profunda mudança no conceito de evangelização ocorrida no século passado, devido ao trabalho de Charles Finney. Mais do que a teologia do próprio Karl Barth, a teologia e os métodos de Finney têm moldado o moderno evangelicalismo. Ele é o herói de Jerry Falwell, Bill Bright e de Billy Graham; é o celebrado campeão de Keith Green, do movimento de sinais e prodígios, do movimento neopentecostal, e do movimento de crescimento da igreja. Michael Horton afirma que grande parte das dificuldades que a igreja evangélica moderna passa é devida à influência de Finney, particularmente de alguns dos seus desvios teológicos: "Para demonstrar o débito do evangelicalismo moderno a Finney, devemos observar em primeiro lugar os desvios teológicos de Finney Estes desvios fizeram de Finney o pai dos fatores antecedentes aos grandes desafios dentro da própria igreja evangélica hoje: o movimento de crescimento de igrejas, o neopentecostalismo, e o reavivalismo político".
Para muitos no Brasil seria uma surpresa tomar conhecimento do pensamento teológico de Finney. Ele é tido como um dos grandes evangelistas da Igreja Cristã, e estimado e venerado por evangélicos no Brasil como modelo de fé e vida. E não poderia ser diferente, visto que se tem publicado no Brasil apenas obras que exaltam Finney. Desconheço qualquer obra em português que apresente o outro lado. Meu alvo, neste artigo, não é escrever extensamente sobre o assunto, mas mostrar a relação de causa e efeito que existe entre o ensino e métodos de Finney e a mentalidade consumista dos evangélicos hoje.
Em sua obra sobre teologia sistemática (Systematic Theology [Bethany, 1976]), escrita pelo fim de seu ministério, quando era professor do seminário de Oberlin, Finney revela ter abraçado ensinos estranhos ao Cristianismo histórico. Ele ensina que a perfeição moral é condição para justificação, e que ninguém poderá ser justificado de seus pecados enquanto tiver pecado em si (p. 57); afirma que o verdadeiro cristão perde sua justificação (e conseqüentemente, a salvação) toda vez que peca (p. 46); demonstra que não acredita em pecado original e nem na depravação inerente ao ser humano (p. 179); afirma que o homem é perfeitamente capaz de aceitar por si mesmo, sem a ajuda do Espírito Santo, a oferta do Evangelho. Mais surpreendente ainda, Finney nega que Cristo morreu para pagar os pecados de alguém; ele havia morrido com um propósito, o de reafirmar o governo moral de Deus, e nos dar o exemplo de como agradar a Deus (pp. 206-217). Finney nega ainda, de forma veemente, a imputação dos méritos de Cristo ao pecador, e rejeita a idéia da justificação com base da obra de Cristo em lugar dos pecadores (pp. 320-333). Quanto à aplicação da redenção, Finney nega a idéia de que o novo nascimento é um milagre operado sobrenaturalmente por Deus na alma humana. Para ele, "regeneração consiste no pecador mudar sua escolha última, sua intenção e suas preferência; ou ainda, mudar do egoísmo para o amor e a benevolência", e tudo isto movido pela influência moral do exemplo de Cristo ao morrer na cruz (p. 224).
Finney, reagindo contra a influência calvinista que predominava no Grande Avivamento ocorrido na Nova Inglaterra do século passado, mudou a ênfase que havia à pregação doutrinária para uma ênfase à fazer com que as pessoas "tomassem uma decisão", ou que fizessem uma escolha. No prefácio da sua Systematic Theology ele declara a base da sua metodologia: "Um reavivamento não é um milagre ou não depende de um milagre, em qualquer sentido. É meramente o resultado filosófico da aplicação correta dos métodos."
Finney não estava descobrindo uma nova verdade, mas abraçando um erro antigo, defendido por Pelágio no século IV, e condenado como herético pela Igreja, ou seja, que nenhum de nós nasce pecador; o homem, por nascimento, é neutro, e capaz de fazer escolhas para o bem e para o mal com inteira liberdade. Finney tem sido corretamente descrito por estudiosos evangélicos como sendo semi-pelagiano (ou mesmo, pelagiano) em sua doutrina, e um dos responsáveis maiores pela disseminação deste erro antigo entre as igrejas modernas.
Na teologia de Finney, Deus não é soberano, o homem não é um pecador por natureza, a expiação de Cristo não é um pagamento válido pelo pecado, a doutrina da justificação pela imputação é insultante à razão e à moralidade, o novo nascimento é produzido simplesmente por técnicas bem sucedidas, e avivamento é o resultado de campanhas bem planejadas com os métodos corretos.
Antes de Finney, os evangelistas reformados aguardavam sinais ou evidências da operação do Espírito Santo nos pecadores, trazendo-os debaixo de convicção de pecado, para então guiá-los à Cristo. Não colocavam pressão sobre a vontade dos pecadores, por meio psicológicos, com receio de produzir falsas conversões. Finney, porém, seguiu caminho oposto, e seu caminho prevaleceu. Já que acreditava na capacidade inerente da vontade humana de tomar decisões espirituais quando o desejasse, suas campanhas de evangelismo e de reavivamento passaram a girar em torno de um simples propósito: levar os pecadores a fazer uma escolha imediata de seguir a Cristo. Com isto, introduziu novos métodos nos seus cultos, como o "banco dos ansiosos" (de onde veio a prática de se fazer apelos ao final da mensagem), o uso de qualquer medidas que provocassem um estado emocional propício ao pecador para escolher a Deus, o que incluía apelos emocionais e denúncias terríveis do pecado e do juízo.
O impacto dos métodos reavivalistas de Finney no evangelicalismo moderno são tremendos. Seus sucessores têm perpetuado estes métodos e mantido as características do fundador: o apelo por decisões imediatas, baseadas na vontade humana; o estímulo das emoções como alvo do culto; o desprezo pela doutrina; e a ênfase que se dá na pregação a se fazer uma escolha, em vez da ênfase às grandes doutrinas da graça. As igrejas evangélicas de hoje, influenciadas pela teologia e pelos métodos de Finney, acreditando que reavivamentos podem ser produzidos, e que pecadores podem decidir seguir a Cristo quando o desejarem, têm adotado táticas e práticas em que as pessoas são vistas como clientes, e que promovem a mentalidade consumista nas igrejas evangélicas.
A relação entre os métodos de Finney e o espírito consumista moderno foi corretamente notado por Rodney Clapp, em recente artigo na Christianity Today (Outubro de 1966): "Ao enfatizar a importância de se tomar uma decisão para Cristo, Charles Finney e outros reavivalistas ajudaram na sacramentalização da ‘escolha’, elemento chave do consumismo capitalista de hoje. O reavivalismo [de Finney] encorajava sentimentos de êxtase e a abertura do indivíduo para mudanças costumeiras de conversão e reconversão" (p. 22).
O Senhor Jesus preferiu doze seguidores genuínos a ter uma multidão de consumidores. Creio que a igreja evangélica brasileira precisa seguir a Cristo também aqui. É preciso que reconheçamos que as tendências modernas em alguns quartéis evangélicos é a de produzir consumidores, muito mais que reais discípulos de Cristo, pela forma de culto, liturgias, atrações, e eventos que promovem. Um retorno às antigas doutrinas da graça, pregadas pelos apóstolos e pelos reformadores, enfatizando a busca da glória de Deus como alvo maior do homem, poderá melhorar esse estado de coisas.
Via: Hermeneutica Particular
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